segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Piraguaçu: o conto piaga do Semideus do Rio Parnaíba



A seguir, partilhamos o primeiro conto do Movimento Piaga, escrito após a publicação do Manifesto de Arte Piaga. O texto foi produzido pelo escritor miguelalvense Frederico A. Rebelo Torres.

Após ler o conto, fiquei positivamente surpreendido com a profundidade da pesquisa etimológica, com o enredo, com a paisagem e com as lições que a história nos transmite. Além disso, o conto é perfeitamente conectado ao arquétipo do sobrevivente (Piraguaçu), aos conflitos humanos e aos guardiões mitológicos presentes em diversas outras culturas. Em cada detalhe narrado, eu realmente consegui visualizar as cenas na minha mente, como se escutasse de diferentes narradores ao longo dos vários séculos nos quais o conto ocorre. Considero este conto uma produção atemporal e que rompe barreiras geográficas, por nos fazer viajar a um Piauí antigo e por envolver aspectos importantes como a preservação da natureza, a transformação que permite a sobrevivência, a relação de uma população com seu bioma, além de conflitos amorosos.
Rafael Nolêto
(Jornalista, Escritor e Idealizador do Movimento Piaga)


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PIRAGUAÇU: O Semi-deus, meio homem, meio peixe.
Primeiro Conto Pós Manifesto da Arte Piaga
INTRODUÇÃO À MITOLOGIA IDENTITÁRIA PIAUIENSE

Autor:
Frederico A. Rebelo Torres
Escritor e Folclorista - ALVAL/AHMOCAMPI/UBE

"A Ilha do Areal" (Pintura de Rafael Nolêto)
Em tempos ancestrais, quando o majestoso Rio Parnaíba fluía sereno e imponente, e a Ilha do Areal mantinha sua pureza intocada, habitava ali uma nobre índia da ilustre Nação Tupy, da Tribo Tabajara Tapuio, conhecida como Amanayara. Ela, com notável distinção, desfrutava da honra de ser a primogênita e favorita do eminente Cacique Ibá-guaçu.


Nesse remoto período, a Ilha do Areal, um território sagrado para encontros e festas religiosas dos indígenas locais e visitantes, encontrava-se em uma região influenciada, em tempos mais recentes, pelas leis dos homens brancos de Bitorocara, um modesto povoado no Grão-Pará, reverenciado como um local sagrado pelos Tupy Ibi.

Com o fluir do tempo, os nomes dos lugares gradualmente evoluíram, e foi nessa região, embora não seja possível precisar o ano ou a era exatos, que os acontecimentos narrados se desenrolaram. Relembrando o passado, tudo teve início nas proximidades de Bitorocara, que ao longo do tempo se transmutou em Santo Antônio do Surubim, e, posteriormente, passou a chamar-se Campo Maior. Por fim, essas terras desde o início do século passado foram incorporadas sob a jurisdição do município de Miguel Alves, agora situado no recém-criado Estado do Piauí.

"Amanayara, a bela índia" (Pintura de Rafael Nolêto)

Conta a lenda que Amanayara, cujo nome indígena significa “Ama das Chuvas”, era a mais deslumbrante dentre as índias de sua tribo, suspeitou que carregava em seu ventre a semente de um guerreiro Tremembé, chamado Porã, que significa “O Belo” cuja tribo rivalizava com os indígenas locais, pois os Tremembés àquela época tinham a fama de serem canibais, uma prática estranha aos Tapuios.

Envolta em desespero, confrontada pela impossibilidade de justificar tamanho dilema e temendo a reação de seu pai e da inteira tribo, a jovem Amanayara decidiu encerrar seu sofrimento, lançando-se, mesmo grávida, nas águas do Rio Parnaíba. Ali, a formosa Amanayara encontrou seu trágico destino, afogando-se nas profundezas das águas barrentas do sagrado Rio Parnaíba, diante das palavras de maldição do pai cheio de ira.


Tupã, o deus do trovão, comovido por tal infortúnio, agiu para que o filho de Amanayara, da índia que havia perecido nas profundezas do Rio Parnaíba, fosse gerado no ventre do maior dos peixes que habitavam suas águas, assim preservando-lhe a vida. Após vários meses no ventre de um enorme Surubim, que percorreu o Parnaíba da nascente à foz, entre o verão e o inverno, nasceu o curumim com sua natureza metade peixe, metade homem.

Tupã, o próprio pai de Ibá-guaçu com a índia tupy Uyara, para promover a justiça puniu o próprio filho, o semideus Cacique Ibá-guaçu, por sua atitude egoísta e injusta transformando-o em vegetação, uma palmeira frondosa hoje conhecida como Babaçu, para servir aos ribeirinhos eternamente e outorgou ao filho de Amanayara a tornar-se o guardião das correntezas do Rio Parnaíba e o protetor das criaturas aquáticas, o filho de Amanayara foi agraciado com dádivas divinas.

"A transformação de Ibá-guaçu em palmeira"
(Pintura de Rafael Nolêto)

Tupã, maravilhado por sua criação, concedeu-lhe a habilidade de existir tanto sobre, quanto sob as águas doces daquele rio, e não bastando, Tupã ordena à natureza que conceda ao vivente o poder de metamorfosear-se conforme o desejo, alternando entre a forma humana e a pisciforme, e ainda hibrida, conforme lhe aprazia. O nome conferido por Tupã a esse ser foi Piraguaçu, que significa em Tupi-Guarani “O Grande Peixe” e ele foi coroado como o maior entre todos os habitantes das águas do Parnaíba.

No entanto, Tupã advertiu Piraguaçu a não se afastar excessivamente do Rio Parnaíba, nem a permanecer em terra por longos períodos. Pois, quando ele se encontrasse na esfera terrestre sob a forma humana, quanto mais tempo passasse afastado do rio, maior seria a ameaça ao seu bem-estar físico, dado que sua natureza era mais aquática do que terrestre. Tupã também lhe comunicou que, enquanto permanecesse mergulhado nas profundezas do Velho Monge, as águas seriam protegidas, e as chuvas fluíram ininterruptamente.

Piraguaçu, por eras incontáveis, permaneceu submisso a Tupã. Contudo, durante suas incursões na pele de um homem, um ser de sedução e vigor inigualáveis, ele se viu arrebatado pelo amor de uma jovem. Movido por uma paixão avassaladora, tomou a decisão de abdicar de sua divindade fluvial e estabelecer-se como um humano de forma irrevogável. Esse ato desencadeou um terrível seca que assolou o Vale do Parnaíba no alvorecer do século XX, na década de quinze.

Tupã, enfurecido pela desobediência, exigiu que Piraguaçu, mesmo a contragosto, retornasse às profundezas das águas do Parnaíba e reassumisse seu papel de guardião. A partir desse momento, como punição, Tupã retirou-lhe a capacidade de transformar-se em humano. Assim, ao mergulhar novamente nas águas do Rio, sua forma física cresceu a proporções gigantescas. Mas as penalidades não cessaram por aí.

Tupã, em sua fúria, decretou que qualquer descendente do encontro com o Surubim Piraguaçu, seja ele masculino ou feminino, seria uma criatura híbrida, metade homem, metade peixe, assemelhando-se às sereias. Além disso, essas criaturas estariam destinadas a habitar as águas sagradas do Rio. Para manterem-se vivas, deveriam, a cada setenta anos, seguir um ciclo de renovação, seduzindo outras criaturas a adentrarem o Parnaíba.

"O Nascimento de Piraguaçu"
(Pintura de Rafael Nolêto)
Muitos pescadores declaram acreditar que a Mão D’Agua do Rio Parnaíba, é na verdade uma filha de Piraguaçu com uma humana, naquela relação da qual o mesmo foi punido pelo deus do trovão. 

Ribeirinhos alegam, há décadas, ter avistado o imenso peixe nas proximidades da Boca do Furo, no entorno do Pontão e nas profundezas das águas do Morro do Mangue no leito do Rio Parnaíba. Conta-se que, um século atrás, tripulantes do Vapor Rio Parnaíba atacaram o gigantesco surubim, deferindo-lhe golpes na cauda, mutilando-o, resultando no epíteto "Surubim Bicó do Rio Parnaíba".

Alguns pescadores alegam que Bicó, ou Piraguaçu, reside nas profundezas do Rio Parnaíba, em cavernas subaquáticas, nas margens do Rio, entre União e as abissais profundezas do canal próximo ao Morro do Mangue em Miguel Alves.

Os pescadores mais antigos relatam que, ao lançarem seus anzóis ou redes, os enganchos nas águas do Rio Parnaíba, frequentemente testemunham um fenômeno misterioso, onde suas redes são subitamente arrebatadas por uma força desconhecida que as arrasta implacavelmente para as profundezas das águas. Outros narram histórias igualmente enigmáticas, mencionando que suas frágeis canoas foram viradas inexplicavelmente, como se desafiassem as leis da natureza.

Uma antiga tradição entre os pescadores nativos, hoje praticada por poucos homens que compreendem o sagrado equilíbrio do Rio Parnaíba, envolvia o ato de devolver os primeiros peixes capturados às águas, um gesto de veneração ao imenso Surubim. Este ritual visava conter a possibilidade de que o gigante emergisse das profundezas, rumando para as "coroas" do Rio Parnaíba, uma jornada que poderia perturbar o equilíbrio das águas e, por consequência, afetar a pesca de todos. Aqueles que pescam nas proximidades da Ilha do Areal juram que já avistaram um homem em posição fetal sobre as areias, outros afirmam que é o Surubim Gigante do Rio Parnaíba, que vive no entorno da Ilha e pode ser visto nas noites mais escuras. 

"Piraguaçu e os Encantados do Rio Parnaíba"
Pintura de Rafael Nolêto
Foram realizadas inúmeras tentativas de capturar o magnífico ser em fotografias, mas este ser desafia as convencionalidades do tempo e do espaço, manifestando-se de maneira imprevisível e súbita. No entanto, no século passado, ocorreu um evento intrigante que deixou todos atônitos: o desaparecimento de um jovem que trabalhava na construção da Praça José Rêgo, no município de Miguel Alves, Piauí. Ele fora seduzido por uma misteriosa moça de beleza extraordinária, chamada Iara, que até então jamais havia sido vista na região. O desaparecimento ocorreu após ela conduzi-lo para um banho nas águas coroadas do Rio Parnaíba, e desde então, ambos jamais foram avistados.

Estes acontecimentos levaram os ribeirinhos, pescadores e a comunidade que conhece as histórias do Surubim a suspeitarem que Iara, com o propósito de garantir sua própria sobrevivência e perpetuar sua linhagem, tenha atraído o homem para as profundezas do Parnaíba por meio de encantamentos. A suspeita que paira sobre Iara é a de que ela possa ser filha do próprio Surubim Piraguaçú.

Sempre que a seca se intensifica, as águas do rio recuam, expondo as coroas de areia que emergem como ilhas no leito do Parnaíba. Nesse momento, os peixes desaparecem e os pescadores, que dependem da pesca às margens do Rio Parnaíba, especulam sobre o destino de Piraguaçu, o Surubim Gigante, questionando se ele teria perecido ou se Iara, sua suposta filha, teria emergido das águas em busca de amantes para seduzir e levar consigo para as águas turvas do rio.


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Relatos envolvendo Iara e outras narrativas extraordinárias foram devidamente registrados no conto intitulado "A Mãe D'Água do Rio Parnaíba", uma obra também concebida pelo escritor Frederico Antônio Rebelo Torres, que eternizou essas misteriosas e encantadoras histórias.

A lenda do Surubim Gigante não apenas preserva a cultura local, mas também nos convida a refletir sobre nossa relação com a natureza e as consequências de nossas ações no equilíbrio frágil que sustenta nossas vidas. 

Assim como os heróis gregos aprendiam a humildade diante dos deuses, nós também devemos aprender a humildade diante da natureza, dos nossos próprios mitos, reconhecendo que somos parte dela e que nossa sobrevivência depende de cuidar e respeitar o mundo natural que nos cerca. A lenda nos convida a refletir sobre nossa relação com o meio ambiente e a importância de preservar a beleza e a integridade da Terra para as futuras gerações. 

No enigmático conto do "Surubim Gigante do Rio Parnaíba," deparamo-nos com uma valiosa lição que está presente tanto nas mitologias gregas quanto nas lendas indígenas. Tal como nas narrativas gregas, onde os deuses puniam a arrogância e a desobediência dos mortais, esta genuína manifestação da Mitologia Piaga nos adverte sobre as consequências de desafiar a harmonia natural e divina.

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